domingo, 26 de agosto de 2012

O fim... (que é um novo início)

[updated]

Mais de um mês depois de ter regressado de Santiago, escrevo finalmente este post final (passe a redundância).
Falta de tempo, mas principalmente falta de palavras.
Este foi sem dúvida o post que mais me custou escrever...

O regresso de autocarro decorreu sem incidentes. Mas depois de chegada a Lisboa, ainda tinha muitos km para fazer até casa. E o que me valeu foi o facto de o meu carro ter caixa automática (ver post anterior), ou não teria conseguido conduzir.
Chegar a casa foi estranho.
Os meus filhos receberam-me de braços abertos e sorriso no rosto.
Olhei em redor, e tudo parecia inalterado, como 6 dias antes o tinha deixado.
Mas não. Alguma coisa tinha mudado, e custei a perceber o quê.

Tantas pessoas (das que sabiam onde fui estes dias) me perguntaram como correu, o que aconteceu, como foi, e eu pouco lhes conseguia responder. Apenas conseguia dizer "foi bom, adorei" (e era verdade...). Demorei a assimilar tudo, e creio que nem agora ainda o fiz...
Também por isso a própria descrição dos dias foi saindo a "conta gotas".

Resolvi fazer o Caminho de Santiago por tudo o que aqui descrevi inicialmente, mas durante o Caminho descobri outras motivações. Não o fiz por questões religiosas, mas encontrei religiosidade em todo o Caminho.

Resolvi ir sozinha porque tinha necessidade de me afastar, de me recentrar, de me reencontrar.
Apesar de já ter tomado essa decisão, dias antes da partida perdi de uma forma abrupta e inexplicada alguém que amava, que estava sempre presente comigo e para mim, que muito me tinha dado e que de repente me deixou sem qualquer explicação. Também para essa perda eu busquei consolo, refúgio, respostas.

Fui sozinha. Tive medo. Tive dúvidas. Pensei desistir mesmo antes de lá chegar.

Nunca estive sozinha.
Levei comigo músicas escolhidas por amigos, roupa emprestada por amigos, material, recordações. Levei comigo no coração todos aqueles que de mim fazem parte, mesmo quem decidiu deixar de fazer. Levei comigo as palavras que troquei, que me fizeram acreditar, aprender a amar sem conhecer, que me fizeram ser/sentir tantas vezes como uma montanha russa de emoções. Todos, mas mesmo TODOS estiveram comigo sempre...

Nunca estive sozinha, porque sempre encontrei Peregrinos prontos a ajudar, a conversar, a simplesmente caminharem lado a lado comigo.
Curiosamente, desde o americano John, ao austríaco, e terminando nos três fantásticos portugueses que me acompanharam e incentivaram no último dia, tenho a certeza absoluta que foram colocados no meu trajeto na hora exata em que deles necessitei. Cada história que comigo partilharam (e que por coincidência tocava sempre em algum ponto mais sensível da minha estada ali), cada gargalhada nos momentos mais difíceis, tudo, mas mesmo tudo se conjugou de forma perfeita para me ajudar.
Até o meu sobrinho Santiago nasceu no dia em que eu parti!!!

Optei várias vezes por ter companhia nos jantares, nos convívios, mesmo na caminhada final, quando poderia tê-lo feito sozinha, conforme planeara de início.
Fiz bem em fazer isso?
Deveria ter feito uma maior introspeção?
Teria dessa forma conseguido alcançar melhor os meus objetivos?
Foi como foi, e adorei que assim tivesse sido. Podia ter sido diferente. Podia...

Sim, Rui, as minhas expectativas não foram goradas neste Camiño. Provavelmente foram atingidas de uma forma diferente do que eu esperava de início. Mas não vim de lá desiludida.

Uma das coisas que me perguntei vezes sem conta desde que "regressei ao mundo real" foi se valeu a pena, mas acima de tudo, em que é que valeu a pena.
Valeu. Valeu por tudo.
Se voltaria a fazer tal e qual, tomando as mesmas opções que tomei no momento? Talvez não. Mas não teria sido a mesma coisa...

A minha forma de encarar muitas coisas na minha vida, nas "minhas pessoas" mudou.
Refresquei a cabeça e vim de lá sem muitas respostas ou consolo, mas mais serena. É precisamente essa a palavra que melhor descreve o que de lá trouxe: serenidade.

Mais de dois meses depois (e em período "oficial" de férias), consigo colocar em algumas palavras (as públicas...) aquilo que senti e que sinto.
Fui eu quem mudou no regresso a casa.

O meu Camiño deu-me exatamente aquilo que eu necessitava.
Não trouxe todas as respostas, não saí de lá a perceber todas as minhas dúvidas, não me trouxe ninguém nem nada de volta.
Mas deu-me aquilo que eu mais queria: Eu
Não sei (ainda) exatamente aquilo que quero ou que vou fazer. O meu rumo não está ainda perfeitamente definido, mas isso acho que nunca estará. Tem uma direção, isso sim. Sei o que não quero. Sei quem não quero.
Sei que tenho de fazer escolhas, tal como cada um faz as suas, e viver em consciência com elas.
A reflexão dentro da Catedral (e na praça, frente a ela) vem-me muitas vezes à memória desde o dia 7 de junho. E a cada vez retiro mais conclusões...
O meu Eu continua por montes e vales, mas agora estabelece prioridades diferentes. Mais relevantes, creio eu.

Por fim, digo-vos que trouxe de lá duas certezas:
- Fazer o Camiño foi a minha melhor opção nesta fase da minha vida 
- Vou voltar a fazê-lo (no ano que vem, outro trajeto...)

Não posso terminar este post (blog) sem voltar a agradecer a todos, como aqui.
Sem cada um deles, esta minha caminhada não teria sido possível.
Agradecer ao Pina, ao Jorge e ao Duarte, pela fantástica companhia/apoio/incentivo do último dia de caminhada.

Necessito de agradecer especialmente a um outro Amigo que não foi mencionado nesse post inicial:
- Ao HD, que comigo trocou mails durante a viagem até Tuy, que me aconselhou tanto sobre questões práticas como sobre o Camiño em si. Por ser quem é, pelo seu exemplo de vida e por estar sempre à distância de um mail ou de um sms. Seja para o Camiño ou para outros Caminhos... :)

Obrigada a todos por terem estado desse lado.


PS - Peço desculpa por diversas vezes o português deste blog não ser o melhor. Escrevi sempre com o coração, quase sempre sem rever o que tinha escrito.

já cá...

Trouxe de lá uma coisa menos boa.
Uma "fantástica"  lesão nos joelhos (especial incidência no esquerdo), que levou a andar de canadianas durante umas semanas, a fazer 1001 exames e a "terminar" num especialista em traumatologia desportiva, que para já me prescreveu imensos medicamentos e muita fisioterapia.
Mas a coisa vai lá... porque eu disse-lhe que tinha de me pôr não só "boa", como no "ponto exato" para repetir a brincadeira no próximo ano, e quem sabe mais km ainda.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Dia 5 (em Santiago)

Dormi muito tempo, e muito bem*.
Tenho uma vaga ideia de ter ouvido uma ligeira movimentação no quarto - provavelmente quando o J e o D se foram embora de manhã cedo, mas não cheguei a acordar.
Pela primeira vez nestes dias, tinha colocado o despertador para as 10h - um luxo!
No entanto, às 9h00 já estava a acordar, e reparei que o Pina também. Ele preparava-se para sair e ir apanhar o autocarro de volta a Lisboa.
Convidou-me para ir com ele tomar o pequeno almoço, e acedi.
Despedimo-nos junto à pastelaria e eu resolvi voltar ao quarto para arrumar as coisas que tinha deixado espalhadas - e dizer na receção que ia ficar pelo menos mais um dia. Indicaram-me que, como ficaria sozinha, poderia então ocupar uma cama num dos quartos do 1º andar, apenas com raparigas. yupiiiiii!
Apesar das dores (que mesmo sem mochila permaneciam muito intensas), sentia-me descansada. Sentia-me livre. Mentalmente, comecei a fazer uma lista do que queria fazer naquele dia e nos sítios que queria visitar.
Queria ir à Missa do Peregrino. Queria sentar-me na Catedral (seguindo um desejo meu, e um "conselho" do HD). Queria passear por Santiago e fundir-me naquele local histórico e repleto de carga emocional.

Enquanto arrumava tudo, bateram à porta.
Era o Pina, que não tinha conseguido lugar no autocarro.
Pediu-me para ver na internet os horários dos comboios, mas a wifi do hostal estava em baixo. As informações que eles tinham na receção também não incluíam Portugal como destino... Perguntou-me se não queria ir com ele até à estação de comboios.
De facto não me apetecia muito, mas como no dia 7 havia greve em Portugal, também eu precisava de saber informações de lá. Por outro lado, sentia-me em dívida para com ele e para com os outros 2 companheiros de jornada. Fomos.
Nada a fazer.
Dia 7 estava mesmo tudo parado a partir de Vigo (a partir de onde o trajeto é assegurado pela CP), e portanto não se conseguiria ir de comboio para lado nenhum no nosso país. Fiquei aborrecida. Desde que tinha planeado esta viagem, tinha decidido fazer o regresso de comboio. Além do conforto, havia a paisagem, o preço, e tudo isso.
Como se costuma dizer, o que não tem remédio, remediado está.
Ele conformou-se que só se iria embora no dia seguinte, eu conformei-me que teria mesmo de ir de autocarro.
Fomos comprar os bilhetes.

Com todas estas deslocações (o hostal ficava na parte de cima do centro histórico, a estação de caminho de ferro na outra ponta, à direita, a estação de autocarros para o lado oposto), andámos mais uns km - sempre a subir e a descer. Eu, aflita com dores, começava a ter a noção que aquelas dores seriam algo mais complicado que simples cansaço. Mas já que ali estava...
Nisto, perdemos quase um dia inteiro.
Conversámos. Creio que havia um sentimento de parte a parte de responsabilidade de companheirismo. Tínhamos no entanto objetivos diferentes quanto às motivações de ali estarmos, e como amigo não empata amigo, concordámos ir cada um às suas.
No entanto ainda visitámos juntos o museu da Catedral, e o Pina resolveu vir comigo à Missa**.
Quando íamos a caminho do centro, encontrámos o Mauro. Foi uma alegria imensa (e também uma surpresa) vê-lo! Perguntei-lhe por Finisterra, e ele disse que tinha resolvido não ir porque estava muito cansado. Ainda tinha considerado ir de autocarro visitar o local, mas desistiu ao ver que este demorava 3h para cada lado. Por isso, ficou por ali a curtir Santiago. Deixei-o, pois estávamos em cima da hora para a Missa.

Concluí que a Eucaristia das 19h não era "igual" à das 12h... e fiquei triste por não ter participado na dessa manhã. Quando terminou, despedi-me do Pina. Ele iria regressar ao hostal e eu ficava por ali. Combinámos na manhã seguinte sairmos juntos para o autocarro.

Regressei ao interior da Catedral, que começava a esvaziar.
Sentei-me num banco isolado. Absorvi o ambiente. Conversei comigo, conversei com Deus. Desabafei e limpei a alma. Renovei a alma.
Peguei no meu Diário, reli tudo o que tinha escrito. Escrevi mais. Sobre estes dias, sobre o que me tinha levado ali, sobre o futuro.
Sim, HD, como disseste "revi e senti" o que o Caminho me ajudou a descobrir!
E foi tanto...
Ao fim dos 4 dias de Caminho, os pensamentos, as ideias, as peças soltas que tinha encontrado ou conseguido, os pensamentos isolados que por vezes me tinham assolado e que na altura me pareciam sem nexo, começavam a fazer o seu sentido. Ali sentada comecei a ver o panorama global do que tinha procurado ao longo do Caminho. O rumo estava agora a tomar traços cada vez mais nítidos na minha mente, e tudo se conjugava, lentamente, de uma forma absurda e subitamente lógica.
Em alguns aspetos, de uma forma que me surpreendeu verdadeiramente.
Mesmo nas alturas em que nenhum pensamento fluia, estava serena e em paz.
Às 21h fui "corrida" dali pelo guarda, que queria fechar a Catedral.

Não estava pronta para sair dali, para regressar ao mundo, mas tive obviamente de obedecer.
Fui sentar-me na Praça, onde outros Peregrinos se juntavam. Escolhi um lugar na outra ponta, mesmo de frente para a porta principal da Catedral, sentei-me no chão e ali fiquei.


Sentia-me tão em casa e tão em paz!
Apesar de terem decorrido umas escassas 4 ou 5 horas desde que tinha terminado a Eucaristia, e que eu me tinha recolhido para pensar, escrever, sentir, a mim parecia-me que aquele tempo tinha durado tanto ou mais que os dias de caminhada. Sentia que estava ali sentada há dias, meses, anos até.

Sentada no chão da praça da Catedral, observava a movimentação de pessoas que por ali passavam. Uns tiravam fotografias, outros observavam os edifícios. Grupos ou pessoas isoladas. De novo verifiquei que os Peregrinos se distinguiam perfeitamente dos "outros".
Ri-me comigo própria. Gargalhei mesmo.
Também eu já tinha ali estado várias vezes. Como turista, como voluntária num Xacobeo, em passeio durante a lua-de-mel. De todas as visitas que fiz a Santiago, em nenhuma me senti tão parte integrante daquela cidade. Sim, naquele dia (ou desde aquele dia) eu não era uma simples visita. Agora eu estou em Santiago para sempre, e Santiago faz parte de mim.

Saí porque começou a chover mesmo muito.
Ainda dei umas voltas pelas ruas da zona histórica da cidade. Ou melhor, ainda me arrastei vagarosamente durante algum tempo pelas ruas de Santiago, mas chovia de tal maneira que tornava impossível usufruir do que quer que fosse. De qualquer forma, era já tarde (umas 23h30) e ainda nem tinha jantado.
Pelo caminho de regresso ao hostal tentei comprar alguma coisa para comer, mas estava tudo fechado. Quando lá cheguei, no entanto, outros hóspedes estavam a começar a jantar, e convidaram-me a juntar-me a eles. Foi um fim de noite animado.






*Apesar de pouco me conseguir mexer (virar) na cama, tal eram as dores nos joelhos
** Nunca tinha participado numa Eucaristia e queria ver como era...

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dia 4 (Valga-Santiago), parte II

Enquanto ali estivemos sentados, passaram por nós bastantes peregrinos de bicicleta, muitos deles portugueses. 
Eu começava a sentir cada vez mais próximo o fim da caminhada.
Sentia-me esperançada, feliz, ansiosa.
Retomámos.
Creio que eram "apenas" 5km até Santiago. Restava a dúvida se a contagem era até à entrada (como os outros marcos do Caminho, que contabilizavam apenas até à entrada e depois a partir da saída de cada localidade), ou se era até à catedral.
O Jorge falava também muito numa derradeira subida junto ao hospital, que segundo ele era mesmo muito comprida, além de inclinada. Não se calava com isto... :)
Descida para Santiago

Este percurso foi muito diverso, e sempre debaixo de chuva.
Entrámos num bosque, percorremos terra batida durante algum tempo, atravessámos uma ponte e um local com algumas casas.
Por esta altura o ritmo de caminhada era inferior a 2km/h, segundo os dados do GPS.
Até que eles se ofereceram para me levar a mochila...
Necessitei de uma força sobre-humana para não chorar naquele momento, e só Deus sabe o quanto me custou recusar esta oferta de uma forma gentil, mas firme. Uma oferta muito generosa e que se me afigurava como um copo de água no meio do deserto, mas que eu não me podia permitir aceitar. 
Não tão perto do fim, do meu objetivo.
Se por um lado eles próprios estavam já muito cansados (principalmente o J e o P), por outro eu não queria de forma alguma terminar o meu Caminho daquela forma. 
Não!
Tinha chegado ali sozinha. A mochila fazia parte de mim já. Tudo o que eu necessitei durante aqueles quatro dias trazia-o às costas, e assim o levaria até à Catedral.

Esta foi, dos meus quatro dias de Caminho, a mais dura etapa.
Se até aqui eu tinha alinhado nas brincadeiras deles, procurando responder com entusiasmo à forma alegre e amiga com que me apoiavam, nesta fase recolhi-me. Não teria conseguido chegar ao fim se não me concentrasse em mim, se não me abstraísse dos km que me faltavam, da dor.
Olhava o chão, de novo um pé à frente do outro, e outro, e outro, o som dos bastões a bater na terra, controlar a respiração e muito cuidado com a colocação dos pés - a mínima pedrinha provocava-me dores que julgava não serem possível existir a "andar". Por várias vezes me senti a cair, e valeram-me os bastões para não ir ao chão.
Olhar em frente desconcentrava-me, porque me mostrava o que ainda havia a percorrer, e por isso baixava a cabeça, embrenhava-me nos meus pensamentos para esquecer a dor, e empurrava caminho.

A dada altura, ainda pelo bosque mas em estrada de alcatrão, o Duarte sugeriu que caminhasse em "marcha atrás". Basicamente, podia ter-se lembrado disso mais cedo! Fiz um bom bocado assim. Era uma solução maravilhosa, porque não me doía nada aquele movimento e conseguia andar bastante mais depressa.

A dada altura, damos connosco praticamente na entrada de Santiago.
No entanto, estávamos perante uma encruzilhada. Para a esquerda, um caminho urbano que o Jorge identificou como sendo o que tinha feito uns anos antes e que passava na dita subida "dramática" junto ao hospital. Para a direita, um caminho pelo campo. Optámos por este último.
Não sei dizer se fizemos a escolha certa ou não.
Sei que demos connosco um bocado* mais adiante em ruas movimentadas, subir e descer passeios, atravessar estradas e subir lancis. Estávamos algures em Santiago já, mas da Catedral ou da zona histórica, nem vê-las.

Ao contrário de todo o resto, este percurso até chegarmos à Catedral foi complicado de realizar porque os nativos dificultaram bastante. Perdemo-nos, garantidamente, talvez tenha sido por isso.
Eu já não olhava para lado nenhum, limitava-me a segui-los.
As ruas estavam cheias de gente (espanhois), muito transito e uma confusão brutal.
Demorámos imenso tempo, e seguramente andámos às voltas...

Até que entramos na zona histórica.
E aqui só me apetecia correr!!!
Quando estávamos já muito próximos do centro, oiço uma voz a chamar-me. Uma, duas, três vezes. Até que percebi que era mesmo comigo, e procuro ver de onde vinha o som. Era o Mauro, que se encontrava numa esplanada rodeado de gente. Acenei-lhe, contente por o ver, gritei-lhe que estava a chegar e precisava de continuar.
Antes de irmos à Catedral, parámos na Oficina do Peregrino (que por acaso ficava na rua por onde entrámos) para irmos buscar as nossas Compostelanas**. Doeu-me ver que tinha... mais escadas para subir e descer. E confesso que me fez muita confusão ver que a Oficina estava repleta de turigrinos que tinham feito o Caminho de carro. Mas adiante.
...

Finalmente, cheguei à Catedral de Santiago de Compostela!
Eram 17h57 quando lá entrei. Tinha feito um percurso de 37km nesse dia, durante 12 horas***. 

(a primeiríssima coisa que fiz foi tirar esta foto - eles lá à frente)

Entrar na Catedral de Santiago de Compostela teve um efeito absolutamente indescritível.
Já tinha ali estado diversas vezes, mas sempre de "visita". Chegar ali, 4 dias e mais de 100km depois era... indescritível e absolutamente incompreensível para quem nunca fez o Camiño****.

Aproximei-me de um banco livre, tirei a mochila das costas, sentei-me, relaxei. Relaxei pela primeira vez neste dia. Nestes dias.
Por momentos esqueci todas as dores, o cansaço, as dificuldades.
Eu tinha conseguido.
Fiquei ali, sentada, imóvel. Chorei, rezei, pensei, acalmei-me e realizei o que tinha acabado de fazer. Acho que cheguei a cantar. 
Sentia-me calma e em casa. Sentia-me eufórica. Sentia-me plena. Queria chorar e rir ao mesmo tempo. Acho que ri e chorei mesmo, em simultâneo.
Por momentos fechei os olhos e questionei se aquilo tinha mesmo acontecido, se aqueles dias tinham sido verdade, se aquele momento era verdade ou fruto de um sonho. Respirei fundo, muito fundo. Tentava absorver a atmosfera que me rodeava. Tentava dizer ao meu coração descompassado que sim, estava ali, na minha casa, no meu objetivo, no meu ser.
Sim, era um sonho mesmo, mas um sonho tornado realidade...
Não sei quanto tempo ali estive, mas calculo que bastante, porque quando saí (e consegui descer as escadas da Catedral) eles estavam com um ar meio desesperado à minha espera.
Tirámos a foto da praxe.



Questionámo-nos sobre onde iríamos ficar.
O local que o HD me tinha indicado tinha apenas 1 quarto livre, pelo que o "desocupei". O Jorge tinha uma referência de um hostal, que era o mesmo que me tinha sido indicado pelo M. Resolvemos que iríamos tentar esse, mas... demo-nos ao luxo de ir até lá de taxi. 
Foi magnífico ver 4 peregrinos a entrar num taxi! E mais magnífico ainda foi sentar-me lá...
A viagem não durou nem 5 minutos, mas soube-me pela vida!

Tudo estaria bem encaminhado se... não nos tivessem atribuído um quarto no 2º andar. Bem reclamei, mas de nada me adiantou e lá tive de subir aquilo tudo - se bem que o rapaz da receção me levou a mochila para cima.
O hostal era engraçado, calmito, e o pessoal que por lá andava era simpático.
Tomámos banho, descansámos, fomos passear à net (tinha wifi), e saímos para jantar. Tínhamos combinado ir comer um chuleton de ternero (ideia do Jorge), para celebrar a chegada a Santiago, e lá fomos nós*****.
No dia seguinte, o Jorge e o Duarte iriam seguir até Finisterra, pelo que foi uma noite de festa e de despedida também. Regada com um bom vinho, e um curto passeio pela cidade.

Faltam os pés do Pina, que andava sei lá por onde. Eu sou a que estou de botas e calças

Deitada no chão, junto à vieira de Santiago, a observar a Catedral. 
O Jorge teimava que todos tínhamos de fazer aquilo e ver a Catedral daquele ângulo...

Regressámos cedo ao hostal (creio que pouco passava das 21h), pois estávamos todos muito cansados e cheios de sono. Tinha sido um dia muito duro para todos.
Despedi-me deles nessa noite, pois o Pina iria regressar a Lisboa, e os outros dois iriam seguir para Finisterra.
Dormi que nem uma pedra.







*algures neste dia tinha perdiso a noção de tempo e de espaço
** "certificado" emitido pelos serviços da Catedral, passado mediante a apresentação da Credencial devidamente carimbada
***dados do GPS deles. Os km a mais deverem-se às voltas que demos em Santiago
**** contra mim falo, que só agora o fiz
*****a refeição mais cara destes dias todos, mas valeu a pena

terça-feira, 17 de julho de 2012

Dia 4 (Valga-Santiago), parte I

Este é o dia que mais me custa descrever em palavras (e que nem escrevi no meu Diário).
Apesar de ter, e muito bem, optado por o fazer na companhia dos portugueses que me tinham convidado, foi de todos o dia mais difícil a nível físico, espiritual e emocional. Curiosamente, e "apesar" de ir acompanhada por quatro companheiros de viagem, foi aquele onde consegui uma maior interioridade pessoal. (já explico)
Foi também, talvez, o mais divertido.
(grande baralhação que aqui vai... foi um dia de sentimentos contraditórios, pronto)
Por todos estes motivos, vai ser escrito em duas partes. pelo menos


Confesso que quando comecei a caminhar, num trajeto lindo mas a descer, e vi o primeiro marco - que assinalava 32km, pensei que iria deixá-los em Teo, como inicialmente tinha previsto. 
Não foi um dia fácil.

Tínhamos 32km pela frente, queríamos chegar "cedo" a Santiago, e eu estava com fortes limitações para a saída de Valga e para a chegada a Santiago (que pelos mapas iriam ser descidas acentuadas).
Desta forma, tínhamos combinado acordar às 5h, tomar o pequeno almoço no café onde no dia anterior tínhamos comprado as coisas para o jantar. 
Assim fizemos.

Connosco partiu o Luís.
Eu tinha-me cruzado com o Luís no dia anterior, quando este caminhava com outro senhor espanhol, mais velho. Pensei que eles iam juntos, mas não.
Na altura, o tal senhor tinha caminhado comigo durante uma meia hora, e nesse tempo foi-me falando do seu companheiro. Parece que gostava de fazer o Caminho a correr (???!?), mas parava muitas vezes, em locais de especial beleza, para admirar o verde e a natureza. Chegava a ficar ali parado em contemplação durante mais de meia hora... Por outro lado, de cada vez que via árvores grandes (e portanto antigas), parava também e abraçava-as durante um bom pedaço de tempo. Na altura, não liguei muito ao que este peregrino me disse. (já tinha visto tanta coisa estranha...) Mas neste dia percebi e pude constatar o que ele me tinha dito.
Não sei bem como descrever o Luís.
Ele era um desportista (o corpo visivelmente bem moldado por muitas horas de ginásio - e corrida, segundo ele próprio), tatuagens de cariz religioso nos braços, e tinha umas teorias... interessantes acerca de alimentação e forma de andar. 
Se por um lado não comia porco, não bebia álcool e não tomava pequeno almoço porque "comer logo de manhã dá cansaço e faz mal ao organismo", enquanto ainda no albergue arranjávamos as coisas para sairmos, ele tomou uns comprimidos de coisas que o "ajudavam a ter energia".
Não disse o que eram...
Saiu connosco do albergue e esteve a olhar para nós enquanto comíamos, tecendo considerações sobre alimentação.

...

A saída de Valga é magnífica, e fazê-lo ao amanhecer tornou o percurso ainda mais belo.
Íamos animados (com aquele grupo era impossível não estar), e em busca do "marco" do D. - Ele queria tirar uma foto junto ao marco com tantos km como a sua idade, e sendo o mais novo do grupo, isso estava guardado para este último dia.

Eu e 3 dos meus companheiros deste último dia - o Luis, o Pina, e o Duarte (o Jorge tirou a foto)

Enquanto as minhas articulações não aqueceram, foi doloroso. Optei por fixar o meu pensamento em coisas diferentes, "fora dali". 

(Os acontecimentos deste dia estão um pouco confusos em termos de organização espacio-temporal, por isso não se admire quem me lê se eu "saltitar" nas horas)

Como não me canso de afirmar, estes três companheiros foram fantásticos. O ritmo deles era bem mais acelerado que o meu (cada vez mais lento), mas de uma forma que não percebi bem se tinha sido combinada entre eles ou não, havia sempre um que caminhava mais perto de mim - ali pertinho (poucos metros de distância, às vezes lado a lado), que me ia perguntando como estava, que simplesmente olhava para trás para ver se eu estava bem e/ou a andar. Pareciam saber sempre o momento exato para uma palavra de alento, para uma piada de descompressão, para um silêncio cúmplice.

Ao passar Padrón, o Pina quis ir comprar cerejas, e o Luís quis ir comprar pão para dar aos patos que estavam no rio e comer ao pequeno almoço*. 
Parámos no jardim junto ao rio e esperámos.
Voltou o Pina, comemos as cerejas. Brincámos com os patos. Dissemos piadas. Esperámos.
Do Luís, nada.
Devemos ter estado ali mais de meia hora. Até que um foi à procura dele. Tinha comprado o pão e estava numa esplanada a conversar com outros peregrinos que estavam a sair do albergue de Padrón. E nem o escondeu...
Isto pode parecer estranho, mas vindo da simplicidade e sinceridade que o caracterizava, só nos deu para rir. 

Seguimos.
Pouco depois, o Luís informou-nos que iria ficar numa zona verde, a comer e a contemplar a paisagem. Precisava, segundo ele, de alimentar o corpo com o pão que tinha comprado em Padrón, e alimentar o espírito com um abraço prolongado a uma árvore (segundo ele) milenar que tinha descoberto. Disse-nos que iria ficar por ali cerca de meia hora ou mais, mas que depois disso iria a correr ter connosco.
Deixámo-lo sorridente, concentrado e abraçado à árvore, e seguimos o nosso caminho.
Nunca mais o vimos.

Esta primeira parte do percurso era linda, ainda com muito campo, atravessando ocasionalmente pequenas povoações.

O grupo tinha por hábito fazer a meio do percurso do dia uma paragem de 30-40 minutos para descansar, comer qualquer coisa e trocar de meias. Calhou que neste quarto dia de jornada essa metade do caminho fosse numa terra muito movimentada. Escolhemos o adro de uma igreja, junto ao pelourinho. Mas pouco depois de termos tirado as mochilas das costas, começou a chover bastante, e tivemos de nos mudar para uma fonte que havia junto à estrada. Ali descansámos, comemos qualquer coisa** e reabastecemos os cantis com água fresca.
Fizemo-nos de novo ao caminho, debaixo de chuva, mas parámos poucos km à frente. Eles ainda me perguntaram se eu queria continuar (já que eu própria tinha passado os 3 dias antes a dizer que preferia andar devagar do que fazer paragens e retomar), ou almoçar com eles. Fiquei, e soube bem aquela paragem, o hamburguer, o convívio com os turigrinos americanos que encontrámos ali.

Ao passar Teo, olhei o marco que apontava 13km.
Doía-me tudo. Estar de pé, com as pernas esticadas, doía. Dobrar as pernas doía. A solução nas paragens era adotar uma posição vertical, com ligeira flexão dos joelhos.
Considerei que ficar ali sozinha e no dia seguinte enfrentar aqueles km todos sem companhia ia ser penoso. Nem lhes referi estes meus pensamentos. Meti pelo caminho de terra batida que entrava num bosque e segui viagem.

A partir daqui começámos a ver muita malta desta.
Era observar os autocarros a parar, e eles - os turigrinos, a saírem de lá frescos que nem alfaces, de mochilas levezinhas às costas e a fazerem-se à estrada. Obviamente nada tinha a ver com isto, mas confesso que no meio do meu cansaço e das minhas dores todas, aquilo me fez muita confusão.

Senti pela primeira vez que estava a atingir o meu limite numa subida junto a uma estrada movimentada, que eu na altura julgava ser já próxima de Santiago.
Se calhar até era, mas o facto é que por esta altura já tinha deixado de ter noção de tempo e de distância. E nem queria olhar para os marcos. Obrigava simplesmente o meu corpo a ignorar a dor e a obedecer à minha mente: um pé à frente do outro, e outro, e outro, e outro.
Chovia, a subida era mesmo grande e comprida, inclinada e numa estrada cheia de carros.
Apenas eu, a olhar para o chão (não queria ver o fim interminável daquilo), e os gritos de incentivo dos meus novos amigos. Chamavam por mim, batiam palmas, brincavam...
Ao chegar ao topo, pensei que estava já próximo de Santiago. Enganei-me redondamente.
Pelos dados do gps, faltariam ainda 2 míseros km antes da derradeira descida para o nosso destino final. Mas ao menos esses eram a direito.

Atravessámos a localidade, e considerámos parar para uma cerveja, antes da descida. Estava tudo fechado, e por isso aproximámo-nos do bosque verdejante que nos separava de Santiago de Compostela.
Eu, que até aí tinha sempre preferido seguir caminho em vez de parar, implorei por um breve descanso. Encontrámos um recanto junto a uma casa e descansámos, comendo os últimos amendoins que eu ainda tinha comigo.
Estávamos a uns escassos 200m do início da descida...

(continua)






*eram umas 8h30/9h - mais de 3 horas depois de termos começado a andar portanto, mas ele ainda não tinha comido nada a não ser os comprimidos que tomou logo assim que acordou
 ** pouca coisa mesmo, porque não tínhamos podido comprar comida em Valga

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Dia 3 (Pontevedra-Valga)

Dormi muito bem, pela primeira vez no Caminho!

O Massimo acordou-me às 5h00 (estava eu ferradíssima), para partirmos juntos. Ao início pareceu-me boa ideia, mas vim a descobrir que estava errada.
Tratei dos joelhos com o gel que alivia as dores musculares, e saímos. Parámos para tomar o pequeno almoço* - uma vez que não tínhamos conseguido comprar nada, e este pequeno almoço demorou uma eternidade. Não que tivesse pressa, mas se me tinha levantado cedo, era porque queria começar a andar cedo, e não exatamente perder tempo na conversa.


Por incrível que pareça, só começámos a andar pelas 6h30... e porque a Eva, que pelos vistos pensava o mesmo que eu, se levantou e foi embora.
De qualquer forma, rapidamente o grupo começou a desfazer-se, graças aos diferentes ritmos de andamento das 8 pessoas que o compunham. A Laura tinha entretanto resolvido ficar e seguir, ainda que o fizesse mais devagar.

O início de dia correu bem. Depois de "aquecer", a dor nos joelhos acabava por passar (ou adormecer). O pior era mesmo parar, arrefecer e voltar a andar.
Resolvi que, para me "proteger", nesse dia não iria parar. Iria caminhar mais devagar, mas excetuando a obrigatória pausa para comprar e comer qualquer coisa, não iria fazer paragens
À saída de Pontevedra -com os alemães Ralf e Anja

Pouco depois desta foto, eles continuaram e eu fui ficando para trás. (não sei como, porque a Anja tinha as solas dos pés feitas numa bolha pegada...). Mais atrás ainda, seguiam o Rui, com a Eva e a Laura.
Sabia, pela análise do trajeto, que hoje me iria defrontar com mais subidas... e descidas. Procurei não pensar no assunto e concentrar-me na paisagem, nos meus objetivos desta aventura e no que me tinha levado ali.
A aproximadamente metade do trajeto entre Pontevedra e Caldas de Reis, o pessoal estava sentado num café a beber e a comer. Comentei que iria mesmo tentar chegar a Valga nesse dia. O Mauro perguntou-me se estava a falar a sério...
Observei a descida que me esperava e percebi que seria pior parar ali e depois enfrentar as dores. Continuei.

Apesar disso, andei relativamente bem durante este dia, que ficou quente e seco.
No entanto, e como tinha optado por não encher o cantil, para não carregar mais esses 2kg, e já perto da hora de almoço fiquei sem água. Tinha uma nova subida pela frente, não encontrava uma fonte e comecei a ficar preocupada.

A atravessar San Caetano. Laura e Rui em 1º plano, lá ao fundo eu e os alemães (foto da Eva)


Talvez porque estava a atravessar pequenas localidades de interior, e desta vez era 2ª feira (supostamente as pessoas estariam a trabalhar), nem sequer via nenhum habitante a quem pudesse pedir água. Confesso que cheguei a considerar entrar em algum quintal e procurar uma torneira, mas contive-me.

Até que passo por uma casa onde um senhor de idade lavava roupa num tanque de pedra. Pedi-lhe se me deixava encher o cantil.
De uma grande amabilidade, prontamente disse que sim e convidou-me a entrar no seu quintal. Bebeu da água com que lava a a roupa - para me mostrar que aquela água era mesmo boa, esperou que eu tirasse o cantil (ficou admiradíssimo com o meu water-bag), encheu-o, disse-me que aguardasse ali e entrou em casa.
Regressou com um tabuleiro onde tinha colocado dois copos, pão e uns bocados de carne de aspeto estranho mas um sabor delicioso.
Fiquei ali um bom pedaço a conversar com ele.
Falou-me dos filhos, que moravam no sul de Espanha, de como a mulher tinha falecido há uns anos, de como ele gostava de se sentar no quintal pelo meio da manhã a observar os peregrinos. De como ficava feliz quando eles, como eu, metiam conversa com ele e lhe faziam companhia ainda que por pouco tempo.
Comoveu-me, e tive pena de não poder estar ali mais umas horas.

(Ainda perto de Pontevedra)
Por esta altura, vi nos marcos os primeiros sapatos que ali eram deixados pelos peregrinos - provavelmente por não estarem já em condições de seguir

Entretanto apanhei os três portugueses, e seguimos a par durante um pedaço.
Muito animados, confesso que não sei bem como conseguiam andar aquele ritmo, conversar, brincar, contar anedotas e tudo o mais ao mesmo tempo. Ao pé deles, ninguém ficava indiferente ou desanimado. Desisti, com pena minha, de os tentar acompanhar. Disseram-me que iriam ficar a Valga, e eu fiquei contente por ir ter companhia nessa noite.

Cheguei a Caldas de Reis perto das 12h30.
Imensas pessoas pelas ruas.
Logo à entrada, quando tentava descobrir o caminho a seguir, reparo que do outro lado da estrada, dentro de um café, alguém me acenava. Reconheci a Hildegard, e fui ao seu encontro. Estranhei vê-la ali, uma vez que tinha ficado a dormir quando saímos do albergue nessa manhã, e perguntei-lhe como ali tinha chegado tão cedo. Tinha apanhado um autocarro**, e apenas tinha percorrido a pé os últimos 5km.
Comi qualquer coisa com ela, despedi-me e voltei a andar.


Recebi entretanto uma sms que me dizia que a Promessa da minha F. tinha sido antecipada e seria na 6ªf. Isto "estragou" os meus planos, e fez com que reformulasse de novo as etapas que tinha pela frente - ou então que saísse de Santiago praticamente no dia em que lá chegasse.
Se dúvidas tinha, abandonei-as. Estava a 12km de Valga, e decidi que os iria mesmo fazer.

Cruzei-me com o Mauro, que seguia muito rápido, e que me disse que ia mesmo seguir até Finisterra (o que eu adorava fazer...). Nesse dia iria ficar a Pontecesures (4km depois de Valga), depois Santiago e Finisterra em 3 dias. Trocámos emails e despedimo-nos.

Os últimos km antes de Valga foram penosos. Nova descida acentuada, e eu já não sabia bem o que me doía mais. O romeno "apanhou-me", e ao ver-me a coxear na descida, ralhou comigo. No seu inglês macarrónico disse-me que deveria dar passos mais pequenos, mas evitar cair sobre os joelhos com a força que estava a fazer, e sobretudo devia evitar dar passos maiores com uma perna do que com outra, ou além dos joelhos teria problemas na anca***.

Eis que no meio do nada, surge um jipe da Guardia Civil que... me manda parar. Acho que por essa altura até o meu cérebro já estava parado, porque a primeira reação que tive foi levar a mão à bolsa com os meus documentos, para os mostrar. O guarda riu-se, e simpaticamente fez-me um inquérito sobre o meu Caminho - nacionalidade, ponto de partida, destino daquele dia, idade, etc - era para as estatísticas da Guardia Civil. No fim, voltou a perguntar se necessitava de alguma coisa, ofereceu mapas da região e ainda me carimbou a Credencial.

Cheguei a Valga perto das 15h. Mais 33km percorridos nesse dia.
O albergue era novo, mas ficava no meio do nada (Valga propriamente dita era uns km mais abaixo, e o Caminho não passava diretamente por lá), e eu era a única peregrina. Boas instalações - 3 camaratas, boas wc, uma sala de estar/jantar espaçosa e com livros e revistas, equipada com loiça, placa e forno e frigorífico, zona para lavar roupa e respetiva máquina de lavar (avariada no entanto).

Quando me descalcei para tomar banho, percebi o porquê de outra nova dor: num dedo do pé, uma bolha de pus com um ar estranhíssimo estava mesmo por baixo da unha.
Blhhhharg!
Fui saber junto da alberguista se ali havia Centro de Saúde ou enfermaria. Perguntou-me porquê, e quando lhe disse ela referiu que havia, mas ficava a 2km. Desesperei...
Ao ver o meu ar, respondeu prontamente que me poderia levar lá, apenas tinha que esperar por um outro voluntário que assegurasse a abertura do albergue. Assim fiz. Fui tomar banho e esperei.

As horas passavam e convenci-me que os portugueses tinham decidido seguir até Pontecesures.
Quando já pensava que ia mesmo ficar ali sozinha nessa noite (e sem achar graça nenhuma a essa hipótese), oiço gargalhadas e vozes conhecidas. Eram o Pina, o Jorge e o Duarte (os 3 portugueses), acompanhados por um espanhol que eu já tinha visto com eles de manhã, mas que não conhecia. Fizeram-me uma grande festa quando me viram!

Eis que oiço alguém a perguntar por mim. Era o voluntário que tinha chegado para ir comigo ao hospital.

Um rapaz novo, levou-me de carro (eram 2km, mas multiplicados por vários), esperou por mim lá (atendimento fantástico) e trouxe-me de volta. Sempre de sorriso aberto e sem me aceitar um cêntimo. Quando regressámos ao albergue ainda me deu material para renovar os pensos no dia seguinte (por mais que eu lhe tivesse dito que tinha).
Foram todos simplesmente 5 estrelas!

Entretanto no albergue, eles tinham combinado fazer o jantar. Uma tal receita especial que metia esparguete, polpa de tomate e umas latas de conserva de mexilhões e carne (???). Fomos às compras ao tasco ali perto (e descansar, e beber uma estrella galicia, e conviver com os locais). Além das coisas necessárias para o esparguete, a dona do estabelecimento ainda nos convenceu a trazer um vinho caseiro (que se veio a revelar intragável), e ofereceu-nos as especiarias de que necessitávamos.

Connosco jantou também o tal espanhol, de seu nome Luis.
Este era desportista (o homem corria com uma mochila pesadíssima às costas), e tinha umas teorias um bocado estranhas (de que falarei mais adiante). Não bebia álcool, não comia porco (porque o porco ingere substâncias que nos são nocivas), não toma pequeno almoço (comer logo de manhã dá cansaço e faz mal ao organismo). Bem, mas era muito boa pessoa e uma companhia divertida. Dizia ele que ia apenas descansar um pouco, jantar, dormir cedo, e que se iria levantar às 3h para seguir caminho.
Claro que... não o fez!

O jantar no albergue foi uma animação pegada.



Chegaram entretanto 3 francesas de meia idade, que andavam a fazer o Caminho acompanhadas por um senhor num carro. Elas caminhavam ligeiras, ele ia transportando as coisas e guardava-lhes o lugar nos albergues. Não faço ideia onde dormia ele...
O que é certo é que elas não deviam nada à simpatia.

Os meus novos companheiros perguntaram-me até onde ia no dia seguinte. Eles iriam fazer direto até Santiago.
Convidaram-me a ir com eles, e eu hesitei. Tinha planeado no dia seguinte ir até Teo (16,6km), ficar lá e no dia seguinte fazer cedo os 14.3km até Santiago.
Mas o timming da chegada a casa, e a dificuldade com que sozinha tinha feito o dia de hoje fizeram-me pensar duas vezes. Sabia que se fosse com eles me iria distrair mais das dores, iria sem dúvida divertir-me, e teria ajuda se a coisa piorasse a sério.
Talvez se tivessem apercebido da minha hesitação. Insistiram bastante, e disseram alegremente que no dia seguinte iriam devagar, pois queriam aproveitar também eles para "descansar" e curtir melhor a chegada a Santiago. "Se fores connosco vamos ao teu ritmo", disseram várias vezes.
Resolvi que iria aproveitar a sua companhia.





*Comi pela primeira vez no Caminho (e única) a famosa torrada com azeite e tomate
** Soube depois que ela tinha colocado um pacemaker no ano anterior, e por isso não podia fazer esforços. Assim, apesar de continuar a percorrer os Caminhos, muitas vezes optava por esta tática
*** Como ele estava certo... nessa noite acrescentei uma nova dor - na anca

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Dia 2 - adenda

[UPDATED]


Devia ter saído de Redondela há coisa de 1h, quando me recordo de uma coisa "importante": tinha deixado no balneário a roupa que tinha lavado à chegada. Considerei voltar atrás, mas desisti - já tinha percorrido km a mais para me dar ao luxo de os fazer mais 2 vezes.
Aborreceu-me muito isto.
Porque a roupa interior era nova. Mas principalmente porque era a tshirt vermelha do Acanuc*.

Outras notas ao dia 2:
- A propósito dos tais emigrantes, refira-se que foram alvo de várias críticas por parte dos peregrinos que saíram mais tarde do albergue de Redondela (críticas acesas, por sinal).
Às 6h00 (em ponto), hora em que se levantaram, resolveram que toda a gente deveria acordar. Por isso, além das conversas entre si, num tom de quem conversa alegremente à mesa do jantar, acenderam as luzes das duas camaratas.
Entendiam eles que a partir das 6h00 era a hora da alvorada geral...

- Como referi, o albergue de Pontevedra encheu (e tinha duas camaratas - uma de 40 lugares - onde eu estava, e outra de 17).
O meu beliche era logo o segundo ao pé da porta, e toda a gente que entrava passava ali. Pouco depois das luzes se apagarem (e de ser suposto haver silêncio), um alemão entra na camarata, acende as luzes de repente e com um vozeirão anuncia que foi encontrada uma bolsa nas casas de banho.
A intenção dele foi boa, mas estávamos já mesmo naquela fase de adormecer... e ficámos danados com o termos acordado assim. Até porque as luzes tinham um temporizador que demorou bastante a apagar.







*escolhi o que levava para o Caminho de uma forma criteriosa, e aquela tshirt em particular era-me muito importante.

Dia 2 (Redondela-Pontevedra)

Comecei o dia cedo. 
Tínhamos combinado (o grupo de ontem) que o primeiro a acordar chamaria os outros. No entanto, acordei pelas 6h, perguntei à Anya se queria acordar e ela disse que não. Segui.
Saí do albergue às 7h00 de novo.
Encontrei-me cá em baixo com os três portugueses polícias, mas eles iam em passo acelerado.

De novo, sair de Redondela foi algo confuso. E aquela hora, como se pode calcular, poucos ou nenhuns moradores se encontravam pela rua (a um sábado, ainda por cima). Vi um à janela e confirmei com ele o trajeto dentro da localidade. Estava na direção certa.

Já nos arredores, começo a ouvir música. Cada vez mais alto a cada metro que andava.
Eis que chego a uma zona já de campo, e vejo um grupo de 3 ou 4 jovens que vinham vestidos para a festa (ou melhor dizendo, aquela hora vinham vestidos "da" festa). À minha esquerda, depois de um campo de futebol, via-se ao longe um terreiro e uma tenda grande, onde muita gente ainda dançava ao som de música de discoteca. E um grupo de 4 jovens cruza o meu caminho, os rostos denunciando o cansaço de quem não dormira, as roupas da festa.

À saída de Redondela, numa ponte sobre o caminho de ferro


A saída de Redondela é muito bonita, e cruza diversas vezes a linha do caminho de ferro.
Não fosse o facto de os primeiros 5km terem um desnível a subir de... 224m (!!?!!!) e seria quase perfeito!
É que se há coisa que eu aprendi relembrei neste meu Caminho é que todas as subidas têm 2 grandes defeitos:
1. São... a subir!
2. Depois de uma subida... há sempre uma dolorosa descida!


Ao passar por uma localidade chamada Arcade (perto das 8h), vejo um grupo de alemãs à porta de um hotel, que me olhavam com curiosidade. Tinham às costas pequenas mochilas de "passeio", e não lhes liguei muito. Pensei que me olhassem por causa de estar a coxear, ou que pela nacionalidade não me reconhecessem como peregrina.

Pontesampaio - onde se deu uma importante batalha na guerra pela independência espanhola


Passei este dia praticamente sozinha, e quase não me cruzei com ninguém. Até que o Mauro me "apanhou". Vinha de novo no seu passo acelerado, mas caminhou um pouco comigo.
Jovem de 30 anos, vem de Bergamo. Veio fazer o Caminho porque, à semelhança do que acontecia comigo, necessitava de um tempo para si próprio, um tempo longe das rotinas diárias, das pessoas. Estar com ele mesmo e tempo para pensar em si e no seu futuro. Comentou aquilo que eu própria pensava: o grupo dos dias anteriores era simpático, alegre e fazia boa companhia. No entanto, para Caminhar durante o dia, preferia fazê-lo sozinho, entregue apenas a si e aos seus pensamentos. Seguiu em frente, de passo ligeiro.

Eis que literalmente no meio do nada, encontro um quiosque.
O Mauro já se encontrava sentado, e eu parei também. O dia estava a aquecer e aproveitei para me refrescar, bem como colocar a joelheira elástica. Os joelhos continuavam a doer, e por esta altura já não conseguia distinguir qual era o pior.
Avisto um grupo que caminhava ligeiro, e reconheço as alemãs dessa manhã. Percebi porque me olharam com tanta curiosidade...

Resolvemos retomar a marcha, e de novo o Mauro seguiu à minha frente.

O percurso deste dia foi muito bonito. Muito campo, o rio, passei junto a locais fantásticos.
No entanto, foi igualmente muito duro, porque teve muitos declives, e os meus joelhos não estavam em condições. Aliás, descer é mesmo insuportável e várias vezes houve em que me vieram as lágrimas aos olhos de tanta dor. Mas... foi também 10km mais curto!

E por volta do meio dia, quando entrava em Pontevedra, oiço várias vozes a chamar por mim, em grande festa. Eram os 3 portugueses, o Mauro, outro peregrino que  vim a identificar como sendo o esloveno, e a francesa. Estavam todos na esplanada de um café, pois o albergue só abria às 13h. Juntei-me a eles e ali aguardámos a abertura.

O albergue de Pontevedra foi até hoje dos melhores, em termos de condições. Dispõe de cozinha, sala de estar, sala de comer, um grande relvado. Tinha ainda máquina de lavar e de secar roupa (em que me juntei com os portugueses e lavei tudo o que tinha).
Enquanto esperava pela roupa, fui sair com a Eva e os italianos (que entretanto tinham chegado).
Percorremos uma boa parte de Pontevedra em busca de um supermercado, mas era domingo e por isso estava tudo fechado. Acabámos nas tapas num centro comercial, onde também consegui wifi.

O Massimo em grande plano (depois das cervejas)

O jantar foi feito com o grupo todo (domingo, tudo fechado. Acabámos na estação rodoviária. Ainda cheia por causa das tapas, comi apenas uma sopa sem sabor - mas quentinha). Entretanto a Laura (a italiana mais novinha) estava também aflita dos joelhos, e decidiu que no dia seguinte abandonaria o Caminho, regressando a Itália.
O Rui deu-me um gel que aliviava as dores, e emprestou-me também uma joelheira para o outro joelho. Bonito! Pareço agora um espantalho cheio de remendos!
duas joelheiras... "modo espantalho" on

Calhou-me de novo uma cama de cima do beliche. Subir e descer era terrível, e optei por pendurar as coisas de que necessitava na armação da cama.
De novo ao final do dia, chegam os emigrantes portugueses. E a minha saga começa. Eis que a senhora que ficou ao meu lado na noite anterior (a mais velha) e que tinha ficado impressionada por eu estar sozinha, se armou em minha protetora e, segundo ela, tinha ficado mesmo muito apoquentada na noite anterior por ver que às 22h eu não estava na cama. Ela pensou que eu me tinha atrasado e tinha ficado do lado de fora do albergue. Havia de ouvir esta história várias vezes durante a noite*...

Ao contrário do que eu esperava (pelo que várias pessoas me tinham dito antes de eu partir), este albergue esgotou. Chegaram a negar a entrada a peregrinos que vinham de bicicleta.
Isto fez com que o grupo que entretanto se formava resolvesse acordar às 5h e sair cedo, para chegar cedo a Caldas de Reis (pelos vistos um albergue com menor capacidade) e arranjar lugar sem problemas.

Entretanto, já eu tinha começado a pensar em andar mais um pouco e seguir até Valga (8km depois de Caldas de Reis). Isto iria permitir-me "fugir" aos ditos possíveis problemas de espaço, bem como avançar no dia seguinte até Teo, reservando o último dia para os derradeiros 12km até Santiago, chegando lá mais cedo e ficando desta forma com mais umas horas para percorrer a cidade.
Resolvi ver como corria o dia seguinte, e tomar a decisão final consoante o meu estado físico. (já que o psicológico estava em alta)





* basicamente... a cada vez que passava por mim a senhora falava no mesmo. E isso irritava-me de sobremaneira...

domingo, 24 de junho de 2012

Dia 1 (Tui-Redondela)

Dormi mal.
Estava com medo de cair do beliche, estava ansiosa, estava com medo (???) de não acordar a tempo.
Pelas 5h30, comecei a ouvir outros peregrinos a acordarem - não que fizessem barulho, mas eu estava com o sono muito leve. Já não voltei a adormecer e portanto fui-me deixando estar deitada. Até que pelas 6h acabei mesmo por me levantar.

Meio taralhoca, não sabia muito bem o que fazer.
Tirei tudo da camarata, arrumei a mochila, devorei o pequeno almoço (sem fome nenhuma, pois o que queria era meter-me ao caminho) e saí.
 6h48 - noite ainda quando saí do albergue



No dia anterior tinha confirmado com o John o sítio onde "apanhava" o Caminho, e por isso seria fácil. 
De qualquer forma, saí ao mesmo tempo que um grupo de portugueses. 
Este grupo - um casal e uma amiga de idade já avançada, e o filho e nora do casal (os quatro primeiros emigrantes açorianos emigrados na Califórnia, e a jovem americana), vinham já desde o Porto. 
Demorei a perceber a sua nacionalidade, pois falavam em inglês mesmo uns com os outros, mas depois de ver que eram "tugas" recusei-me a falar inglês com eles, e entendemo-nos bem. Na conversa que dominou o primeiro dia com quem quer que me cruzasse, registei que foram os únicos (à exceção de mim e do John) que pretendiam seguir até Redondela e não Porrinho. Espantei-me* quando comentaram isso comigo - como é que pessoas com mais de 60 anos, que já estão a caminhar há uns cinco dias, vão conseguir fazer 32km??? Depois percebi...
Lembro-me que as senhoras mais velhas ficaram espantadíssimas (e até zelosas da minha pessoa, como vim a comprovar uns dias mais tarde) por me verem sozinha a fazer o Caminho.

Fiz com eles a travessia de Tui, mas depois ao ver que continuavam num passo muito vagaroso, desejei-lhes um Bon Camino e segui.

Conheci um austríaco (o que ontem me tinha convidado para beber vinho com eles).
Afinal vem sozinho, mas o grupo de ontem tem feito o percurso a par desde o Porto (há uma semana), e ontem resolveram fazer uma festa no albergue. Não cheguei a saber o nome dele.
Já é a 5ª vez que faz o Caminho, e ficou surpreendido quando lhe disse que ia tentar chegar a Redondela. Eles vão todos ficar em Porrinho.

O austríaco, com a tshirt vermelha

Antes de Porrinho, e quando pensava que tinha seguido por algum percurso diferente (parva que eu sou, às vezes), a tal reta sem fim que a Tânia me tinha falado. Uma verdadeira seca... andar, andar, andar pelo meio de uma zona industrial, sem avistar o fim. Como o terreno era plano (embora andar no alcatrão me canse mais), liguei o turbo e acelerei.
Reparei que o John e duas coreanas que tinha visto no albergue de Tui vinham atrás de mim.

À entrada de Porrinho, vejo um cafe e paro um pouco.
Parei para comer qualquer coisa. Com o café com leite veio um... bolo.
Sentei-me cá fora e aos poucos começaram a chegar os peregrinos que vinham atrás de mim, entre eles o John e as coreanas. Estas ainda tentaram meter conversa, mas o seu inglês era mauzito, e pouco se faziam entender ou nos entendiam a nós. Também não pareceram muito aborrecidas com isso.
Voltei a discutir o meu percurso com o John. Todos os outros iam ficar por Porrinho, o que muito me admirava a mim, e a minha ida em frente admirava-os a eles.
Afinal, eram ainda 10h. O que iria eu fazer esse tempo todo ali? Fiz-me à estrada.


Ao atravessar Porrinho ia-me perdendo por duas vezes. A primeira, ao atravessar uma zona em obras e que não estava sinalizada. A segunda vez, valeu-me um espanhol que me identificou e me disse que estava na rua errada. De novo, os habitantes locais simpáticos e solícitos. O John teve as mesmas dificuldades que eu, e como seguia pouco atrás de mim, auxiliei-o também. Sem o saber, foi a última vez que o vi...


Entretanto pelo caminho fui "apanhada" por dois italianos - o Mauro e o Massimo, que tinham um ritmo bem mais rápido que o meu, mas como estavam sempre a parar acabávamos por andar a par e passo. Parámos em Mos numa bodega - eles para comer e eu para carimbar a Credencial.
Bebi uma cerveja que veio acompanhada com... bolo. (se fome tivesse, ficava cheia só com o tamanho das fatias de bolo que eles servem). Fiquei a saber que embora sendo os dois italianos, só ali se tinham conhecido. Vinham desde Porto, há 4 dias.
Segui, deixando-os a comer.


A partir daqui foi sempre a subir durante algum tempo, o que me fez abrandar o passo. Não que tivesse pressa, mas gostava de levar um ritmo mais rápido.
(nesta fase do Caminho os marcos eram menos do que para a frente. Desta forma, e uma vez que eu não levei mapas, não tinha bem a noção da velocidade (km/h) a que andava)


Eis que a aproximadamente 8km de Redondela, numa zona florestal muito bonita (e a subir) começou a chover. Coloquei a cobertura na mochila e segui sem impermeável, pois a chuva era ainda fraca. Um pouco mais à frente, a água começou a cair com intensidade e tive mesmo de o vestir.
Tinha fome, mas não encontrava um sítio abrigado para comer. Até que encontrei uma paragem de autocarro. Tinha comprado no dia anterior uma salada fria, que para mal dos meus pecados vinha carregadinha de pimentos - escusado será dizer que o meu estômago não concordou com o petisco. Mas a fome era negra...


Começou aqui a descida.
Num muro, reparo numa imagem (estava demasiada chuva para me atrever a tirar o telemóvel ou a máquina fotográfica) que mostrava basicamente um triângulo. No alto dizia "N. Sra. Villar", tinha uma seta que dizia "6km" e descia até ao canto de baixo (íngreme) onde estava "Redondela". Ao lado estava escrito "Nossa Senhora de Villar ajuda-te".
Mais tarde entendi o significado daquilo...

Uma descida íngreme, com muitas curvas, e debaixo de chuva torrencial.
Tal como no ano passado nos Pirinéus, os meus joelhos começaram a dar de si, e com muita força. Fazer aquela descida foi muito doloroso, e agradeci ter trazido os bastões. Andava mesmo muito devagar.
No pé esquerdo, a desconfiança quase certa de que uma bolha estava a dar o ar de sua graça**.
Descendo, sempre a descer, fui avançando.
Quando por fim terminou a descida (pareceram-me horas), senti-me de novo perdida. Havia muito tempo que não avistava qualquer sinalização. Tive medo de ter passado por alguma e não a ter visto por causa da chuva. Ponderei por duas vezes voltar para trás. Lembrava-me do relato do Rui sobre peregrinos que se perdiam e tinha de voltar a fazer vários km. Por momentos demasiado longos, senti-me sem norte.
Resolvi seguir em frente, e foi o melhor que fiz!

Entrei em Redondela às 15h00.
Tinha feito os 32km que me tinha proposto para aquele primeiro dia!!! Estava feliz por chegar ao fim do meu primeiro dia no Caminho. Estava feliz por ter feito tantos km. Estava feliz por tudo o que tinha visto, tudo o que tinha descoberto, todas as pessoas que tinha conhecido e com quem tinha falado.
De uma forma incontrolável, comecei a chorar de alegria (estava a tornar-se um hábito). Acalmei-me e fui à procura do albergue.

Quando lá cheguei estava encharcada, por fora e por dentro do impermeável (chovia, mas a temperatura era amena). Fiz check-in (a alberguista teve de me ajudar a secar o telefone, que ia na bolsa do impermeável e estava ensopado), fui instalar-me e tomei um duche.

O albergue de Redondela é bonito, mas as camaratas são super apertadas. Escolhi uma cama numa ponta, para ter algum espaço de manobra.
Confirmei a bolha na planta do pé, e socorri-me da velha técnica da agulha e linha. Uma massagem e um descanso merecido, enquanto escrevia.

Começavam a chegar peregrinos de todos os lados.
Meti conversa com uns portugueses - um casal de aveiro e três polícias de Lisboa.
Já perto das 18h00, quando saí para ir ao supermercado, vejo os portugueses que tinham saído comigo de Tui. Chegaram bem mais tarde, mas lá vinham eles!

Entretanto, uma das portuguesas de meia-idade, ao ver que eu estava na cama da ponta, perguntou-me se não me importava que viesse para a cama junto à minha***. Concordei.
Ao vaguear por Redondela, tive oportunidade de ver uma festa de jovens, com música, dança, artesanato e muita cerveja. Avistei os portugueses, que estavam com um grupo e convidaram-me para jantar.
Era um grupo altamente sui generis e muitíssimo heterogéneo em todos os sentidos: 2 portugueses, 3 alemães, 2 italianos (os que tinha encontrado durante a manhã); idades entre os 19 e os 58 anos; profissões o mais diversas possível.


Foi divertido pela companhia, mas a comida não foi nada de jeito e o vinho era pavoroso.
De regresso ao albergue, ficámos um bom pedaço à conversa e a beber vinho junto à porta, até que a hospitaleira nos veio avisar que teríamos de entrar. Mas deixou-nos ficar na sala de estudo, onde ainda estivémos a ouvir música durante um bom bocado. O Massimo tinha trazido do Porto uma garrafa de Vinho do Porto (????), que abriu.
Antes de me de me deitar, um dos portugueses ainda me "ofereceu" uma massagem nos joelhos, que me soube muito bem e me ajudou a relaxar.

Deitei-me às 00h30, mas custou-me imenso a adormecer. A senhora ao meu lado ressonava brutalmente, e outros tantos pela camarata faziam o mesmo. Por outro lado, eu estava cansada mas excitada com as aventuras e descobertas do dia, e ansiosa pelas que viriam no dia seguinte.
O grupo com que jantei tinha combinado caminhar em conjunto na manhã seguinte, e convidaram-me para ir com eles. Hesitei, mas disse que em princípio iria.
Pouco dormi.









*O ritmo que tinham permitia-lhes fazer mais km, embora em mais tempo. O "espanto" deveu-se ao facto de, ao contrário do John, estes peregrinos não estarem habituados a caminhar nem a fazer exercício
** para o que me havia de dar depois de velha... eu que nunca fiz bolhas 
*** Apesar de os beliches serem individuais, como o espaço era pouco os mesmos estavam juntos 2 a 2